Os dois assassinatos que mudaram a Holanda, parte 2: Theo van Gogh
Como dois assassinatos políticos do começo dos anos 2000 acelerou a polarização da sociedade holandesa e ajudam a explicar a eleição do extremismo político na Holanda em 2023
E aí, tudo bem contigo?
Depois de um pequeno intervalo com um post mais leve, é hora de concluir a série que comecei contando sobre dois assassinatos politicos que mudaram a vida na Holanda, e, em última análise, ajudam a explicar a ascensão da extrema direita na Holanda, com Geert Wilders ganhando a maioria dos assentos do Parlamento holandês na eleição mais recente.
Ufa.
Se você quer recapitular, a parte 1 está aqui. Resumidamente, conta sobre como im Fortuyn, um político de direita, sacudiu tabus ao atacar o conceito de multiculturalismo e propor impedir imigração, especialmente de países islâmicos, entre outras propostas que na época eram impensáveis e hoje lideraram as eleições.
Pim foi assassinado antes de poder concorrer ao parlamento, e esse fato impulsiona seu partido e outros de direita a ganharam as eleições em 2002, tirando o partido que liderava o governo, PvdA, Partido do Trabalho, de esquerda (que liderava as pesquisas até o ocorrido).
A direita governa a Holanda desde então.
Porém, essa não é a história completa. A direita que lidera o governo da Holanda desde 2002 (primeiro com o CDA, Democratas Cristãos, depois o VVD, neo liberais) não pode ser considerada radical ou extremista. E em 2004, quando Geert Wilders saiu do VVD para montar seu partido do eu sozinho, o PVV (Partido pela Liberdade), ninguém o levava muito a sério. Mas outro acontecimento trágico daria novo impulso as ideias promovidas por Wilders e seu PVV.
Você não pode entender a ascensão de Wilders sem entender os assassinatos de Pim Fortuyn e Theo van Gogh. Eu já contei sobre Pim.
Agora vou te contar sobre o assassinato de Theo Van Gogh.
Quem era Theo van Gogh
Você pensar, espera, Theo van Gogh não era o irmão do famoso mestre pintor holandês? Sim, era, claro, mas esse obviamente é outro Theo van Gogh. Estamos falando o tataraneto do Theo original, o que o torna tatara… sobrinho? do Vincent.
De toda a forma, Theo nasceu em 1957, e na juventude largou a universidade de direito para ir trabalhar com teatro e cinema, principalmente como diretor (embora tenha atuado um pouco também). Ele trabalhou também em televisão, e seu trabalho sempre teve um cunho político.
Além de trabalhar com filme e televisão, Theo era também colunista, e ganhou projeção não só pelos filmes, mas por ter opiniões controversas. Depois do 11 de setembro ele se tornou um forte crítico do Islã.
Theo era um amigo e apoiador de Pim Fortuyn, se juntando a ele na condenação ao Islã, do multiculturalismo e da monarquia. Ele tinha um site chamado “De Gezonde Roker” (O Fumante saudável) onde ele publicava textos provocativos, atacando o viés liberal da sociedade holandesa em diversos ângulos. Ele também publicou um livro em 2003 chamado “Allah weet het beter. (“Alá é quem sabe melhor”) onde, adivinha, ele criticava o Islã.
Ele sempre se meteu em polêmica político e religiosa (incluindo com observações anti semitas nos anos 90), agitava o barco, e era contundente com seus textos e retórica.
Suas posições só ganharam força depois da morte de Fortuyn. Um ano depois, em 2003, Theo apoiaria mais uma figura política: Ayaan Hirsi Ali, nascida na Somália, que pediu asilo político na Holanda. Ela se tornaria peça chave nos eventos que levaram a morte de Van Gogh.
(Não) Submissão ao Islã: a controvérsia de um filme
Ayaan Hirsi Ali nasceu na Somália em 1969 e aos 5 anos de idade ela sofreu mutilação genital — a bárbara prática de mutilar os órgãos genitais femininos. É uma prática tradicional em muitos países da África, Oriente Médio e algumas partes da Ásia. É proibida e condenada internacionalmente há décadas, mas infelizmente ainda praticada.
Aos 23 anos de idade, Ayaan pediu asilo político na Holanda, e 5 anos depois, se naturalizou holandesa. Ela renunciou a fé islâmica de sua juventude e se tornou feroz crítica da religião. Ela se identificou com uma ideologia de centro-direita, se juntando ao VVD. Em 2003 ela se elegeu para o parlamento holandês — e foi nessa época que recebeu o apoio de Theo van Gogh.
Em 2004, Ayaan escreveu o roteiro para um curta metragem chamado Submissão parte 1. O filme, cujo título original em inglês (apesar de ser feito na Holanda, o filme é todo em inglês) alude uma das traduções possíveis da palavra Islã.
No filme, 4 mulheres (retratadas pela mesma atriz) falam com Alá, contando suas histórias de abuso. Elas estão usando um véu e roupas transparentes, expondo por baixo o corpo nu, onde estão escritos com henna versos do Corão. Esses versos deixam claro o papel submisso da mulher em relação ao homem e a impureza da menstruação.
A essa altura você já adivinhou quem é o diretor desse filme, né? Sim, Theo van Gogh.
O filme foi eventualmente exibido na TV aberta holandesa. Desnecessário dizer, causou grande controvérsia. E, infelizmente, houve várias ameaças de morte aos dois.
Ayaan ficou assustada com as ameaças, mas ela disse que Theo não levou a sério, e recusou guarda costas. Ele teria dit, de acordo com Ayaan, “Ah, ninguém mata o bobo da corte”.
Ele estava errado.
O bárbaro assassinato de Theo van Gogh
Na manhã de 2 de novembro de 2004, Theo estava indo de bicicleta para o trabalho. Ao parar em um sinal, ele foi atacado a tiros por Mohammed Bouyeri, holandês de origem marroquina. Ele foi atingido por alguns tiros, mas tentou fugir para o outro lado da rua, e se esconder atrás de carros. Porém, Bouyeri continuou perseguindo e atirando (ele atingiu também dois transeuntes).
Durante o ataque, Theo clamou por misericórdia, implorando para o ataque cessar, pedido para conversar. Em vão. Bouyeri executou van Gogh com um total de 8 tiros.
Com o diretor caído na rua, o assassino se aproximou empunhando uma faca e cortou a garanta de Theo van Gogh. E por fim, ele usou a faca para pregar no peito de van Gogh uma carta ameaçando Ayaan de morte.
Quando uma testemunha do ataque gritou “você não pode fazer isso!”, Bouyeri respondeu “posso, e fiz, e é bom pra vocês saberem o que lhes aguarda”.
Theo Van Gogh faleceu no local. O assassino tentou fugir, atirando contra a policia, em busca de provocar sua morte e atingir o martírio. Porém, a polícia holandesa atirou em sua perna, desarmando-o e efetuando a prisão.
Consequências: país em ebulição e surgimento de Wilders
Dizer que o assassinato de Theo van Gogh agitou a Holanda é um eufemismo. Apenas 2 anos depois do assassinato de Pim Fortuyn, a Holanda saiu do choque para a raiva. Houve protestos, depois ataques a mesquitas, puseram uma bomba em uma escola muçulmana, puseram fogo em outra escola. Houve também houve denúncias de websites muçulmanos comemorando o ato bárbaro, e ataques de coquetel molotov a igrejas cristãs. O país entrou em ebulição.
E, pondo gasolina nesse fogo, emerge quem?
Geert Wilders.
Recém-saído do VVD, agora independente e livre para falar sem prestar contas a outro partido, Wilders soltou o verbo e aproveitou para promover o sentimento anti islâmico que varria o país. Ele propôs imediata paralisação de toda imigração muçulmana e vociferou contra o Islã, e ganhou projeção se colocando como uma espécie de herdeiro de Pim Fortuyn , somo se dissesse “viu só no que deu ser tolerante com esses caras?!”
Nas próximas eleições parlamentares, em 2006, Wilders seria eleito pela primeira vez. Na época, o PVV ainda tinha apenas um assento, e apenas um membro. Isso iria mudar nos anos seguintes.
Em 2023, o PVV, agora um partido bem maior, ganharia a maioria dos assentos no parlamento holandês, mas essa parte você já sabe.
Minha breve consideração sobre extremismo
A Holanda, como muitos outros hoje em dia, é um país dividido entre extremos.
Antes de continuar: sim, Geert Wilders é, apesar de negar, um extremista. Se uma pessoa propõe mudanças profundas na sociedade, como Wilders, que inclusive propõe alteração na constituição holandesa (especificamente, ele propõe abolir a cláusula de igualdade perante a lei e incluir uma declarando a superioridade da cultura judaico cristã), proses mudanças no sistema político e abolição de instituições tradicionais do país, essa pessoa pode ser considerada extremistas. São propostas extremas, beirando revolucionárias.
De outro lado, obviamente assassinato de oponentes políticos é um ato extremo, e profundamente condenável. os requintes de crueldade no assassinato de Theo van Gogh causam raiva e contribuíram muito para acelerar a polarização da sociedade.
Nesse tipo de ambiente, sempre surgem oportunistas que usam a turbulência para ascender ao poder — e nesse tipo de situação, a discussão de qual extremo é melhor estar no poder é contra producente. Extremistas de qualquer Aldo sempre querem governar sozinhos. É preciso controlar o extremo, e buscar uma volta ao equilíbrio.
Extremos sempre existirão. Mas quase por definição, eles são minorias. Para crescer, o extremo precisa envolver a maioria de pessoas distribuídas ao longo do eixo político, sem estar nas pontas. Para que isso seja possível é preciso criar uma polarização, um ambiente em que as duas únicas opções sejam um extremo ou outro, sem nada no meio. Dessa forma, o extremista precisa de um outro em lado oposto, para servir como contraponto. Portanto, quando você tem uma reação extremada ao extremista… você está na verdade ajudando esse extremista a descer!
Você combate extremos com moderação. E é preciso condenar igualmente os dois polos do extremo.
Porém, essa discussão é muito ampla, e não cabe nesse artigo já extenso. Algum momento eu volto a ela (se você quiser).
Por enquanto, fica a história para te ajudar a entender um pouco melhor de onde surgiu Geert Wilders e suas propostas. Espero que tenha sido esclarecedor.
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