Criando filhos no exterior: o português que meus filhos falam
E aí, tudo bem contigo?
Você assistia no Insta os meus dois saguis na Bakfiets (a bicicleta cargo que depois foi roubada aqui na Holanda) dizendo “Tchaaaaaaaau” todas as manhãs saindo pra escola?
De toda a forma, muita gente via e acabava me perguntando que língua meus filhos falam, tendo os dois nascido e sendo criados aqui na Holanda. A resposta simples (e simplista) é “português e holandês”, mas a verdade, como sempre, tem mais nuance (e é mais interessante).
Eu e Carla adotamos desde o dia um a tática do “deixa rolar” no aspecto linguagem. Nós falamos português em casa e imaginamos que o holandês viria para a Saguizinha naturalmente através do ambiente — TV, escola e o resto. Quando tivemos o segundo, fizemos a mesma coisa, e o interessante é que tivemos resultados ligeiramente diferentes.
A Saguizinha demorou um monte para começar a falar, mas não para se comunicar. Ela desenvolveu toda uma língua própria, cheia de gestos e pequenas palavras inventadas por ela. Eu cheguei a escrever um dicionáriozinho com o “saguizês”. Acabou que só nós entendíamos ela.
A nossa filha vai para a escolinha na Holanda
Com dois anos e meio de idade, ainda falando apenas saguizês, ela entrou na voorschool, a pré-escola. A voorschool é ligada a uma basisschool (escola básica), e se você é aceito nela, tem entrada meio que garantida na basischool ao qual ela é ligada. A voorschool não é obrigatória, e você pode matricular ela diretamente na basischool, mas aí rola sorteio pelas vagas. Para entrar na voorschool não é sorteio, mas tem que por na fila de espera, e isso demora as vezes mais de ano. Ou seja, seu sagui ainda é recém bebê e você já tem que estar pensando na escolinha…
Claro que não pensamos coisa nenhuma porque éramos ignorantes, e foi um stress achar vaga, e quase perdemos a chance de colocá-la na voorschool. Acabou que conseguimos, achamos uma que milagrosamente tinha havido uma desistência. E lá foi a sagui, toda feliz pro seu primeiro dia de “aula”. E foi um desastre.
Ela não estava acostumada a ficar sem os pais. E ela não falava uma única e solitária palavra de holandês — nem português. Somente saguizês. Ela estava acostumada a ficar com a gente e se comunicar, mas na escolinha o bicho pegou. Todo pai sai da escolinha no primeiro dia com coração apertado pelos choros do filhote ecoando pelo corredor, mas isso se estendeu.
Mas… demos sorte: as professoras eram excelentes (adoro as duas até hoje). Elas me chamaram depois de uns dias de frustração e choro e perguntaram se eu pediria ficar com ela no período de aula (a manhã toda), para ajudar na adaptação. Na época eu estava trabalhando para crescer o Ducs Amsterdam, o que me dava flexibilidade.
(Por anos eu ficava com os saguis de manhã até a noite, quando a Carla chega e eu ia trabalhar da noite até a madrugada no Ducs. No fim de semana a Carla ficava com os saguis, e eu trabalhava sábado e domingo no blog. Well, deu certo, o blog e os saguis cresceram bem… mas paguei um certo preço em saúde).
Enfim, passei um mês ficando direto com a sagui na escolinha, aprendendo as musiquinhas holandesas, o nome dos bichinhos, e cores… eu dizia que eu tava fazendo jardim da infância de novo.
(A pré escola no Brasil ainda se chama jardim da infância? Eu sou da época do “colegial” e do “primário”, mudou tudo…)
Aos poucos ela aprendeu o holandês, e foi ficando sozinha. Ao mesmo tempo ela começou a falar português. Com quatro anos de idade ela foi para a basisschool, e lá foi alfabetizada em holandês. As notas de leitura dela em holandês superaram a média nacional (sim, pai coruja, mas é verdade), e hoje ela lê vorazmente, e fala fluentemente holandês e português. E ela hoje está no ensino m\edio, indo bem (contei sobre o ensino médio na Holanda e a ida dela aqui).
Quer dizer… ela fala fluentemente um português… diferente do nativo brasileiro.
O português que a gente fala no exterior
Eu fui criado em São Paulo, com pais gaúchos. Mas eu nasci em Vitória. Meu sotaque é paulista, mas tem palavras e expressões gaúchas no meio, o que deixa muito brazuca confuso “de ONDE você é mesmo?!”.
Apesar do meu sotaque pesadamente paulistano, eu consigo, se quiser, falar gauchês de Porto Alegre fluente (meus pais se conheceram em Porto Alegre, onde minha mãe nasceu), e faço uma imitação razoável de gauchês da fronteira (onde meu pai nasceu). Ou conseguia falar o gauchês de Porto Alegre fluente como ele era na época da minha infância/adolescência. Porque a língua muda e perdi o contato com POA, porque nessa época parei de ir passar férias com meus avós e tios lá. E isso está acontecendo agora com o meu português paulistano. Morando quase 15 anos na Holanda, eu não acompanho a lingua tão de perto, e meu português está ficando datado. As mídias sociais amenizam essa deriva, mas desde que saí delas, isso só acelerou. E esse é o português que acaba passando pros meus filhos, porque é o que eles ouvem da gente. Ou seja, ele é levemente datado, e isso só está acelerando.
Outro fenômeno que acontece é os dois usarem frases e palavras em holandês no meio das frases em português. Em alguns casos é natural, quando se referem a coisas que são essencialmente holandesas, como pepernoten, ou Koningsdag. Mas ekes usam muitas expressões ou palavras de apoio em holandês (como “bijvoorbeeld”em vez de “por exemplo” ou “toevallig”em vez de “por acaso”). Mas também palavras normais mesmo, inseridas no meio da frase casualmente. E o pior é que eu e Carla acabamos pegando isso também.
Que mais? Bom, eles também várias vezes traduzem literalmente o holandês pro português. Como dizer “vou perguntar para a mamãe por iogurte na compra”, traduzindo vragen, que quer dizer “perguntar’ mas também “pedir”. Ou dizer “hoje eu vi um gato na linha” em vez de “eu vi um gato na coleira”, confundindo aan de lijn, na coleira em holandês, com o literal “na linha”. E a vovó ficou muitas vezes confusa com os netinhos mandando um “um beijo gordo” antes de eu intervir e traduzir “een dikke zoen” para o menos literal mas mais usado “um grande beijo”.
E essas coisas na verdade demonstram algo: eles pensam primariamente em holandês, e quando eles falam português, é como uma segunda lingua. Eles contam em holandês. Os dias da semana vem primeiro na cabeça em holandÊs, aí eles traduzem pro português. E isso com a gente sempre falando português em casa.
Mas quando eles voltam das férias no Brasil, o português dele fica quase indisnguível do nativo. Demora um mês ou dois pra voltarmos ao nosso Portu-landês.
E a leitura em português?
Bom, ai entra uma das diferenças entre eles. Os dois leem muito bem e tem notas excelentes em holandês. Porém, a mais velha tem dificuldade em ler em português. Ela lê, mas dá trabalho, e ela acaba cansando. E ela ama ler — está terminando o Senhor dos Anéis, digo, In de ban van de ring, agora. Mas ler em português… só coisas curtas e muito de vez em quando.
Já o menor lê em português sem dificuldades, pegou todos os acentos, NH, cê cedilhas, til, os muitos e variados sons do XIS, o S que tem som de zê de vez em quando, essas bizarrias que o português tem. Sem nem perguntar muito pra gente. Ele pegou minha coleção de Pato Donald do Carl Barks e saiu lendo.
(Você sabia, né, que Brasil se escrevia em português com Zê antes, Brazil, daí nós mudamos. Casa também se escrevia caza. Eu acho que z faz mais sentido o Z ter som de zê e não ficar fazendo confusão entre s e z, dependendo do caso, mas vou ficar na minha antes de virem me achincalhar de vendido pra gringo, imigrante deslumbrado e sei lá mais o quê).
Corrigir ou não corrigir? (e os micos que a gente paga)
No começo, eu e Carla decidimos não corrigir o português deles, e deixar eles pegarem a pronúncia correta da gente e tal. Mas isso não funcionou muito bem, porque algumas palavras não eram corrigidas, como “funciUna” em vez de “FunciOna”. Acabamos desistindo e corrigindo, e isso ajudou no fim. E quando eles traduzem literalmente, como nos exemplos acima, eu (quase sempre, mas não sempre) corrijo e dou a expressão adequada em português. Também senti que ajudou.
E para escrever? Eles acabam usando muito a fonética do holandês quando querem escrever em português, tipo “Orsigno” em vez de “ursinho”, ou escrever o nome do nosso (agora falecido) gatinho como Linoes em vez de Linus. Passei a corrigir, e conforme eles leem mais em português, isso tem diminuído bastante.
(OE em holandês tem o som do nosso U. O U em holandês tem um som que não existe em português. Isso resultou em hilariantes micos que paguei, como na memorável vez que quis dizer que ia pagar o aluguel (huur) e saiu que eu queria pagar a prostituta (hoer). Holandeses se divertiram horrores com a minha cara).
E eles? Não só corrigem como tiram constante sarro do meu holandês. Eles pedem para eu ficar repetindo uma palavra e rolam no chão de rir com cada tentativa minha. Mas olha, apesar do mico, eu até acabo aprendendo. E o menor me disse até que meu holandês “não é tão horrível”. har har. Obrigado… eu acho.
O holandês que eu falo
A Saguizinha maior me perguntou, quando ela tinha uns 3 anos de idade: “waarom is jouw nederlands zo raar, papa?” (Por que seu holandês é tão bizarro, papai?). Eu lembro de ter um amigo na escola que o pai era americano. ele falava português com um pesado sotaque, que eu entendia, ele falava okay, mas era bizarro. Foi aí que eu percebi que eu virei esse pai que fala bizarro. Ah, bem, fazer o quê? Vou aproveitar pra fazer eles passarem (mais) vergonha na adolescência, porque isso é direito adquirido de pai.
Não vou pagar mico sozinho hahaha!
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Seja como for, mesmo que apenas lendo até aqui, meu muito obrigado e
Forte abraço, ou “um beijo gordo”
Daniduc
PS. Ainda aqui? Cool. Aqui vai uma musiquinha de jardim da infância na Holanda:
Olifantje in het bos, laat je mama toch niet los
Anders raak je de weg nog kwijt, en dan heb je straks nog spijt
Olifantje in het bos, laat je mama toch niet los
Olifantje in het bos, laat je mama toch niet los
Anders raak je de weg nog kwijt, en dan heb je straks nog spijt
Olifantje in het bos, laat je mama toch niet los
Cantei muito.