Como os holandeses lutaram por um país de bicicletas
A geografia da Holanda ajuda, mas não explica a paixão nacional por bicicletas
E aí, tudo bem contigo?
Outro dia publiquei no Ducs Amsterdam um post sobre como andar de bicicleta na sua viagem, mas aqui eu vou falar sobre outro aspecto do país das bikes.
As pessoas vêem a Holanda hoje tomada por bikes e pensam que sempre foi assim, que o ciclismo na Holanda é uma consequência natural e espontânea saída de sonhos e derivada da geografia plana do país. Será que a explicação é tão simples assim?
A Bélgica também é plana em muitas partes, e suas ruas são tomadas por carros. E a Dinamarca é bem menos plana do que a Holanda, e está cheia de bicicletas (a ponto de os dinamarqueses se considerarem o país das bicicletas também, e não precisa brigar pelo título com a Holanda, quanto mais “país das bicicletas", melhor).
Nah. Usar geografia para explicar sociedade é um truque velho e simplista (“países tropicais são subdesenvolvidos porque têm natureza generosa e abundante, e as pessoas ficam preguiçosas porque não precisam trabalhar tanto” era uma teoria levada a sério).
A geografia plana da Holanda ajuda a pedalar, claro, mas não a explicar como a Holanda foi tomada por bicicletas. Aliás, por muito pouco ela não terminou que nem a Bélgica e muitos países no pós-guerra. Deu trabalho, e demorou, mas eles evitaram esse destino.
Foi assim.
O problema do carro na Holanda nos anos 50
Depois da Segunda Guerra, a Holanda, como muitos outros países do mundo, passou a investir no carro como meio de transporte individual. A partir dos anos 50 o carro era dominante nas cidades holandesas. O carro era visto como sinal de progresso, da sociedade se modernizando.
O problema é que as cidades da época não foram construídas para carros. Com ruas estreitas, especialmente nos centros, pouco ou nenhum lugar para estacionar, a cidade estava no caminho do carro. O que fazer? Muitas cidades resolveram se remodelar, derrubar prédios, abrir ruas, criar estacionamentos. Bruxelas fez isso. E muitas cidades da Holanda começaram a fazer isso, Amsterdam inclusive.
Amsterdam só não foi totalmente remodelada, e seu centro histórico preservado, devido a um movimento popular de resistência para manter sua história. Algumas avenidas foram abertas, mas o plano era bem mais extensivo, e por muito pouco Amsterdam não terminou com uma cara bem diferente hoje. Isso ainda não era relacionado com as bicicletas, mas com preservação. De toda a maneira, as cidades holandesas, como era tendência no mundo, migraram para o carro, com muitas se remodelando sim.
Essa preferência por carros teve consequências. As cidades começaram a ficar entupidas por carros e passou a ter um número crescente de mortes devido a acidentes e atropelamentos, incluindo crianças. Em 1971 houve 3300 mortes no trânsito, sendo 400 de crianças (ou 500, dependendo da fonte. Tenha em mente que a população da Holanda nos anos 70 era diferente de hoje).
Isso revoltou a população, cansada de carros pondo em risco as pessoas nas ruas, a desumanização das cidades sendo adaptadas para servir aos carros em vez das pessoas, a poluição, engarrafamentos e, claro, a morte de crianças. Isso virou o mote de uma campanha popular.
Protestar para mudar
Protestos explodiram por toda a Holanda. Começou uma campanha chamada "Stop kindermoord" (Pare o assassinato de crianças!), que ganhou grande apoio.
O governo foi pressionado a mudar, e nesse cenário a crise do petróleo dos anos 70 só dificultou ainda mais sustentar o modelo automotivo como dominante. O preço do combustível estava extremamente alto, as pessoas estavam protestando, e crianças morrendo é um argumento bem forte.
A Holanda se lembrava do tempo antes dos carros, quando havia mais bicicletas e resolveu que na verdade, não havia evoluído tanto assim. Os holandeses queriam bicicletas.
Era preciso mudar. Mas não que o governo estivesse muito empolgado em fazer isso. Pelo contrário.
Mas a população não desistiu e os protestos continuaram por anos.
Na foto, vemos uma manifestação de ciclistas ocupando a rua que cortava a Museumplein, na frente do Rijksmuseum. Hoje em dia não existe essa rua, é uma praça gramada. A foto mostra parte da luta pela atual situação. [FOTO: autor desconhecido, citada de NL Cycling, ver fontes e referências]
Por fim, as manifestações forçaram o governo a passar a incentivar o uso da bicicleta, com construção de infra estrutura e passando leis restringido automóveis e protegendo ciclistas.
Logicamente esse processo não foi rápido — os protestos entraram nos anos 80 — mas a bicicleta se popularizou cada vez mais, se impondo nas cidades e no trânsito.
As bicicletas por fim tornaram trânsito. Com o problema do aquecimento global, o qual a Holanda leva bem a sério (é, afinal, um país com muito do seu território abaixo do nível do mar, como contei aqui), a tendência de reverter o suo de carros continua.
Recentemente Amsterdam restringiu o limite de velocidade na cidade para 30km/h e está estudando fechar para trânsito de carros uma daquelas avenidas abertas nos anos 50. É comum prédios no centro de Amsterdam não terem vagas para estacionar carro, exceto um carro compartilhado para os apartamentos.
O trabalho continuar, mas devemos agradecer os protestos dos anos 70/80 por ter revertido já na época uma tendência e ter incutido de volta a bicicleta na geografia holandesa.
Deixa eu te convidar para a minha nova lista de emails: Tema Livre
Se você é inscrito nessa lista faz um tempo, você provavelmente notou que ela migrou de temas livres e variados para vida, história e cultura na Holanda. Isso se refletiu até em seu nome — agora é Daniduc na Holanda.
Essa mudança foi um grande sucesso — desde que fiz, o crescimento da lista foi dramático.
Fico muito feliz (e agradecido). Quando comecei a Newsletter, ela era experimental, sem um tema definido, uma alternativa para criar conteúdo sem estar preso a um formato, livre da tirania do algoritmo, uma maneira de falar direto contigo.
Aprendi bastante, vi o que funcionava e o que não, e a lista foi evoluindo. No ano passado, após uma longa pausa, ela começou nova etapa aqui no Substack, e notei o bom retorno de posts relacionados com a Holanda. É um bom nicho, e eu certamente adoro falar sobre esse país e minha vida nele. O Substack permite medir facilmente o retorno, e oferece uma excelente plataforma de distribuição e monetização através do seu apoio remunerado.
Porém, eu ainda gosto de falar de assuntos diversos, e ainda acredito que um espaço experimental é importante. A experimentação permitiu o Daniduc na Holanda surgir e crescer. Só que agora esse tipo de post não cabe bnessa lista, que achou seu nicho e seu formato. Onde então?
Em outra lista, claro. Eu criei a lista Tema Livre, onde pretendo continuar falando de assuntos diversos, testando formatos, sem compromisso com periodicidade (pode haver múltiplos meses sem post, pode haver múltiplos posts em uma semana, e pode ser os dois, dependendo da semana ou mês(. Posso falar de canto gutural a Mongólia, produtividade, criação de conteúdo ou o último filme do Godzilla. Ou tudo isso. O nada disso. O tema é livre.
Quer vir junto?
Já tem, inclusive, um primeiro post lá, sobre metas.
De toda a forma, como sempre, deixo meu agradecimento pela sua companhia e apoio. Por falar em apoio — o apoio remunerado dessa lista é o que permite ela (e os meus projetos experimentais também( existir. Se você puder, considere apoiar. Você faz muita diferença:
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De novo, muito obrigado e a gente se fala no próximo email!
Forte abraço
Daniduc
Fontes e referências
Wikipedia: Cycling in the Netherlands
NL Cycling [Vídeo]: How the Dutch got their cycle paths
BBC [Vídeo]: How Child Road Deaths Changed the Netherlands
HOLLAND IN THE 1970S: Dutch campaigners explain why the Netherlands is now so cycle-friendly