Vou explicar a polêmica do Pedro o Negro na Holanda: tradição ou racismo?
A origem do Zwarte Piet, o ajudante do "Papai Noel holandês"
E aí, tudo bem contigo?
Agora em novembro chega o Sinterklaas na Holanda. Não sei se você conhece, mas se você ver o Sint, um velhinho de capa vermelha que vem todo ano entregar presentes para as criancinhas, vai pensar “ja vi isso em algum lugar”….
Mas a lenda holandesa tem suas diferenças para o Papai Noel: Sint é magrelo, carrega um cajado, percorre a Holanda em um cavalo branco (nada de renas), prefere o calor da Espanha ao Polo Norte para morar. E, em vez de elfos, tem um ajudante chamado de Pedro o Negro (Zwarte Piet).
E aqui, amigos, a briga começa.
Uma tradição em disputa: Seria o Zwarte Piet racismo ou uma tradição cultural que deve ser preservada?
Quase tão tradicional no final do ano holandês quanto a noite dos presentes é a discussão nacional sobre o ajudante do Sint. Seria o Zwarte Piet um instrumento de opressão racial institucionalizada ou uma importante tradição cultural a ser preservada?
Eu vou tentar explicar os dois lados da questão da maneira mais honesta que eu conseguir. Eu sinceramente entendo os dois lados. Isso não quer dizer que eu concorde com os dois lados, nem ache ambos válidos. Mas para argumentar com alguém de maneira eficiente, você tem que entender o ponto de vista oposto.
Minha posição vai ficar clara ao longo do artigo.
Mas vamos começar. Primeiro, vamos saber porque o Piet incomoda tanta gente.
A questão do Zwarte Piet na Holanda: porque as críticas existem
Quer saber por que nosso amigo Zwarte Piet causa tanto desconforto em muita gente? Ora, olhe para ele:
(Ilustração: Liederenbundel voor Sinterklaas / autor e ilustrador: desconhecidos - Groningen : Theodorus Niemeijer, [195-?].
Yeah. Se você não vê absolutamente nenhum problema com a representação do Zwarte Piet na tradição, permita-me enumerar alguns pontos que chamam a atenção das pessoas:
Grandes lábios vermelhos retratados de maneira exagerada e caricata
Grandes brincos de argola
Nariz chato exagerado
Comportamento travesso e um tanto irresponsável
Carregar os presentes e fazer outros trabalhos braçais a pé para seu amo branco montado em um cavalo
E, não vamos ignorar, pessoas brancas pintando seu rosto de preto e usando perucas de cabelo crespo para representar o personagem (black face)
Onde a gente já viu essas coisas todas reunidas? Hm. Sim. Em caricaturas racistas de negros. Discorda? Sugiro você dar um rolê pela Wikipedia em inglês sobre Stereotypes of African American e me diga se realmente não vê nenhum deles no Piet.
É tenso. Vamos recapitular:
Os antigos estereótipos racistas ainda presentes
(Frame do desenho animado Scrub me mama with a boogie beat, domínio público
Faz a check list presente nessa caricatura aí de cima e ao mesmo tempo no Piet: grandes lábios vermelhos retratados de maneira exagerada e caricata, nariz chato e exagerado, comportamento travesso e um tanto irresponsável...
(A melancia é bônus).
Você está vendo isso, né?
E depois, ainda temos o lance do black face...
O que é black face
Um ator branco fazendo black face (Ilustração: Strobridge & Co. Lith. domínio público))
Black face era a prática de atores brancos pintarem o rosto de preto para retratar personagens negros, em geral de forma bem estereotipada e caricata, para divertimento de outros brancos. Leia o artigo n Wiki.
Vamos comparar a figura acima com nosso amigo Zwarte Piet como ele é tradicionalmente retratado por aqui:
(Foto: Gerard Stolk CC BY-NC)
Vamos lá, dá pra entender porque nem todo mundo é fã do Piet. O querido personagem é claramente baseado numa caricatura racista de negros. Basta fazer uma comparação objetiva.
Agora, isso quer dizer que os holandeses são racistas? Que quando uma pessoa se fantasia de Zwarte Piet para encantar seus filhos, essa pessoa está sendo a favor da opressão, humilhação dos negros?
O outro lado da questão: amar uma tradição cultural não quer dizer que a pessoa seja racista
(Foto: Jeroen Kransen CC BY-NC-ND)
Imagina você descobrindo que algo que fez parte dos momentos mais queridos da sua infância ser chamado de racismo e uma ferramenta de opressão. E quando quem diz isso ainda por cima é estrangeiro, nem sequer fala a sua língua direito, não viveu sua cultura por dentro, e está te julgando, e julgando uma das suas mais queridas tradições?
Você consegue entender como uma pessoa ter memórias afetivas de infâncias associadas com uma terrível prática vai causar uma reação emocional. Ainda mais quando essa associação quebra a sua auto imagem de pessoa tolerante.
E quando você está apenas tentando dar a seus filhos os mesmos momentos gostoso em família que você teve com seus pais, e aí vem alguém te chamando de racista! Você vai ficar bravo!
Não, gostar do Piet não quer dizer necessariamente que você é racista.
Além disso, quem defende o Zwarte Piet acredita que uma tradição deve ser preservada, não cabe ficarmos mudando, muito menos para preservar sensibilidades de quem não vive nem entende essa tradição.
Okay. É justo exigir que a gente saiba do que está falando. Vamos entender melhor a origem do Zwarte Piet.
A origem do Zwarte Piet (ou: Será que não é mesmo possível mudar tradições?)
Mas se tradições não devem mudar, isso quer dizer que o Zwarte Piet nasceu com o Sint, né? Porque se não nasceu, isso quer dizer que alguém em algum ponto mudou a tradição do Sint!
Claro que foi o que aconteceu.
Veja, a tradição atual de Sinterklaas envolve o velhinho morando na Espanha durante todo o ano, e vindo pra Holanda em fim de novembro em um barco a vapor.
Barco. A vapor!
De onde saiu isso tudo? Claramente um santo do começo da era cristã (São Nicolau é do terceiro século) não dava rolê de barco a vapor pela Idade Média afora, né?
Isso na real foi inventado em 1850 por um educador holandês chamado Jan Schenkman. Em seu livro São Nicolau e seu ajudante, Schenkman criou e popularizou, entre outras mudanças na lenda, a chegada do Sint no barco a vapor vindo da Espanha.
Na época, motor a vapor era o auge da tecnologia, super moderno, e Schenkman estava modernizando a tradição do Sinterklaas [Fonte].
Pois. E sabe quem mais Mr. Schenkman criou pra modernizar o mito?
Reconheceu? Yeah, nosso amigo Zwarte Piet em sua primeira aparição. (Ilustração para o livro Sint-Nikolaas en zijn knecht de Jan Schenkman. Domínio público, autor desconhecido)
E além do barco a vapor, sabe o que mais tava na moda em 1850?
(Ilustração: Jean-Baptiste Debret, domínio público)
Sim. Escravidão. Sentiu o drama?
Hora de mudar essa tradição né? Vamos modernizar isso? Porque já provamos que sim, a tradição pode mudar, uma vez que a própria existência do Piet foi uma mudança na tradição!
O uso político da controvérsia do Zwarte Piet
Mas assim: se a própria tradição do Zwarte Piet saiu de uma modernização de uma outra tradição mais antiga ainda... por que não modernizar de novo? Qual o problema?
O problema é que os defensores do Piet não são apenas aqueles que tem uma ligação afetiva com uma tradição querida da sua própria infância, que nada mais querem do que reviver com seus próprios filhos os bons momentos que tiveram em suas próprias famílias.
Tem gente que encara a questão de forma nacionalista: alegam que a cultura holandesa está sob o ataque e deve ser conservada e protegida. Sob ataque de quem? Quem se ofende com o Zwarte Piet?
As minorias representadas, é claro. Percebe a manobra? Se o Zwarte Piet é a cultura holandesa que deve ser preservada, e as minorias estão atacando a cultura holandesa, é porque... as minorias não são holandesas!
Entende onde eles querem chegar? É um modo de dizer: não são os holandeses que estão querendo mudar a tradição, para que se crie uma nova que seja mais inclusiva para holandeses de todas as etnias. "Se fossem holandeses, eles não tentariam mudar a cultura holandesa". Com isso, você exclui da participação igualitária da sociedade a minoria e subentende que negros não são holandeses.
E aí, amigo, aí sim é racismo.
Mudanças na tradição do (Zwarte) Piet estão sim acontecendo
Beleza, mas tudo isso não quer dizer que as pessoas estão protestando e ninguém está ouvindo. O Establishment holandês está sim reagindo. Lentamente, e às vezes de maneira desastrada, mas está.
A primeira reação foi negar o problema de uma maneira indireta: na verdade, na verdade, o Piet não era Negro... na real ele era branco e tinha apenas se sujado de carvão ao descer da chaminé. Pronto, resolvido.
Huh... não. Obviamente essa tentativa de mudar sem mudar não satisfez. Quer dizer, além do evidente absurdo de não tocar nas outras características estereotipadas da listinha lá de cima, ainda adicionava um problema extra: a cor negra é devido a sujeira.
Pode imaginar uma criança negra numa escolinha na Holanda, com seus coleguinhas dizendo que ela é suja de carvão? Pelamor!
Tá, ok. A segunda tentativa foi dizer que os Pieten (e sim, a tradição admite mais de um Piet hoje em dia) na verdade, na verdade são de todas as cores. Eles passaram por um arco íris e plufa, ficaram multicoloridos, e a cor negra seria apenas uma das cores dos Pieten. Assim, olha que massa, a gente deixa o Zwarte Piet como está, basta acrescentar outros Pieten de outras cores. Rosa, Roxo, Amarelo...
Problem solved.
Só que não. De novo, os outros estereótipos racistas continuam presentes apenas no Piet de cor negra. De novo, estamos apenas varrendo o problema para baixo do tapete, fingindo que mudamos sem mudar.
E agora?
É possível respeitar o passado sem ficar preso a ele? (ou: é preciso aprender a criticar o que se ama)
Frequentemente rola o argumento de "meus amigos negros holandeses não se importam" (sério! O próprio Primeiro Ministro holandês usou esse argumento).
Só que isso é meio complexo, porque sim, tem muitas pessoas que se importam, e bastante (e com justa razão) com os estereótipos apresentados pelo Piet. E protestam. E esses protestos foram diversas vezes reprimidos com uso de violência. Eventualmente a coisa escalou num ponto que não pode ser ignorada. Seguir defendendo black face era insustentável e o governo interviu.
O governo, na pessoa de seu então ministro da Segurança e Justiça, Ard van der Steur, em resposta a um questionamento da Tweede Kamer, reconheceu que:
"Na interpretação do Zwarte Piet tem papel estereótipos negativos. Estes podem trazer não intencionalmente a tona preconceitos e discriminação que podem ofender pessoas. Ao mesmo tempo, o governo enfatiza que o fato das pessoas celebrarem com alegria e paz uma festa infantil não as torna racistas.
A Câmara é da opinião de que uma proibição governamental do Zwarte Piet não é a solução, mas que o governo pode desempenhar um papel para facilitar um diálogo respeitoso e apoiar iniciativas partindo da sociedade para tornar o Zwarte Piet um personagem que faça justiça a todos. O Sinterklaas deve ser uma festa para todas as crianças e por isso a Câmara apoia que a festa evolua com os tempos". [Fonte]
Aí sim, seu Ministro!
Hora de mais uma tentativa. A nova versão do Piet (agora oficialmente sem o Zwarte no nome) abandona o black face e dessa vez deixa claro que é um homem branco sujo de carvão.
(Foto: Geert Snoeijer, divulgação Sint in Amsterdam)
Bem, pareceu um passo na direção certa. Menos caricato. Mais honesto. Sem descartar a tradição, mas evoluindo. É o suficiente, porém? É preciso seguir caminhado…
Passando o amor e inclusão para as próximas gerações
Nessa aventura de aprender uma nova cultura, eu mais aprendo do que ensino pros meus filhos. Através dos meus saguis eu vejo a alegria e o amor que os dois personagens trazem, e como essa tradição realmente une a criançada da Holanda.
E eu fico angustiado de pensar que existem crianças que ficam excluídas dessa tradição por se verem espelhadas de uma maneira grotesca em um personagem que é na real para ser origem de alegria. O Sint e o Piet devem incluir e unir, não separar por cor ou origem.
Eu concordo com o ministro: O Piet deve continuar, mas não entendo querer o congelar no tempo, preso num passado de 150 anos. Tradições são criadas pelas pessoas e as únicas culturas que não evoluem são as culturas extintas. Enquanto as pessoas estão usando uma tradição, ela é viva, muda e se transforma. A própria existência do Piet, ele mesmo adicionado bem depois à tradição, é prova disso.
E a melhor mostra de que de fato evoluímos é transformar um motivo de divisão entre os holandeses em uma forma de união, através do amor comum por um personagem. Essa é, acredito, a maior lição que o Piet pode passar para nossos filhos.
Forte abraço
Daniduc
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