Relatos de viagem: entre as renas, norte da Finlândia, circulo polar ártico, verão
O terreno montanhoso zunindo pelas janelas da van deixa bem claro que eu não estava mais nas Terras Baixas, mas depois de dois voos e 40km de estrada eu meio que já sabia disso. Mas se ainda restasse qualquer dúvida, a van subitamente diminuiu a velocidade para evitar atropelar a família de renas que andava tranquilamente acompanhando a dupla linha amarela que divide o tráfego. Bem, no norte da Finlândia, acima do circo polar ártico, as renas eram o tráfego.
Por uma semana em 2019 eu reservei um chalé, ou cabana, para me isolar do mundo, sem esperar que um ano depois, em 2020, o mundo iria a forra se isolando de mim. Sempre me senti atraído por lugares remotos, e graças uma overdose de Jack London na infância, pela Taiga em particular. O local que escolho é um popular destino de inverno, com estação de esqui, mas eu estava indo no verão para onde o sol não se põe. Isso significava que seria apenas eu, alguns poucos nativos e as renas. Para um introvertido como eu, um lugar que você vê mais renas do que pessoas é um bom lugar.
Eu cresci achando que eu era apenas bizarro, mas passar tempo isolado no ermo, ou em retiros, é uma das necessidades de introvertidos, como muito bem explica Susan Cain no seu livro o Poder dos Quietos. (Eu continuo me achando bizarro, mas não por ser introvertido.)
O motorista da van na qual eu era o único passageiro parecia entender meu desejo por retiro e não disse uma única palavra desde que eu o contratei na saída do pequeno aeroporto 40km atrás. Ou talvez ele fosse monoglota e não entendesse inglês (uma nota de 30 euros e o endereço escrito ele entendeu bem). Ou talvez fosse mudo, sei lá. Seja o motivo que for, seu laconismo o tornou meu motorista ideal. Isso e não atropelar renas, também é uma boa característica. Embora ele também não as ultrapassou, e seguimos em ritmo de quadrúpedes por mais uns 5km, até a ungulada família resolver que era hora de deixar a estrada e retornar para a floresta de pinheiros, permitindo o taciturno finlandês re-acelerar.
A essa altura eu estava pensado se a cabana existia mesmo ou eu viraria isca de urso para alimentar a família do motorista finlandês, talvez um caçador nas horas vagas (provavelmente um caçador nas horas vagas, no verão ali parecia mais fácil se sustentar com carne de caça do que transportando nerds perdidos). Mas enfim o finlandês estacionou, me desembarcou e sumiu, com a tácita promessa de voltar para me buscar em 7 dias (mais 20€ e gestos). Andei um pouco e vi o conjunto de 4 ou 5 cabanas, Uma delas tinha meu nome em uma nota na janela. A chave estava na porta do lado de fora. Ursos não sabem girar chaves, então o proprietário estava tranquilo que a cabana não seria invadida antes de eu chegar, ou foi o que ele me disse. Aparentemente a parte dos ursos foi uma piada. Espero. De toda forma, ele não estava preocupado com outra pessoa entrando na cabana.
A cabana era bem equipada, com sauna finlandesa, lareira, dois quartos, um banheiro e uma sala emendada na mini cozinha. Mais do que suficiente para apenas um brazuca bigodudo. Depois de largar as minhas tralhas, a primeira coisa a fazer era achar comida. O proprietário me disse que havia um supermercado relativamente perto, para suprir os abundantes turistas que frequentam a estação de esqui no inverno. Acompanhei a estrada ao sol poente (ele ficaria poente até a manhã seguinte, aliás) e achei de fato um gigantesco supermercado no meio do nada. E totalmente vazio. Entrar nele deu um sentimentozinho de apocalipse zumbi. Filas e filas de caixas, uma musiquinha de supermercado tocando nos alto falantes, e absolutamente ninguém. Yeah. Okay. Por que eu me meto nessas em vez de ir me besuntar numa praia lotada, tomando uma antártica como uma pessoa normal?
(Nossa, só de escrever isso me deu uma alegria de não ser uma pessoa normal…)
Primeira missão: achar cereais para o café da manhã. Acabei achando urso em lata.
Bem-vindo ao Norte da Finlândia, daniduc. Um lugar onde o que tem para fazer é andar ou correr por incontáveis horas através de florestas, onde tem (muito) mais rena que gente, onde o sol não se põe ou não se levanta e onde os ursos existem dentro e fora de latas. Me senti em casa.
Esse “Relatos de viagem” é mais um experimento que estou fazendo nessa Newsletter. Se tiver bom retorno, eu continuo a história, e posso eventualmente contar de outras viagens que fiz. Se não, bem, a gente segue testando.
Forte abraço
Daniduc
Adoro relatos de viagens! Ainda mais quando bem contados como os seus... por mim "Relatos de Viagem" deve ser um quadro fixo :)
Ah, e as fotos estão lindíssimas!