E ai, tudo bem contigo?
Uma das principais distinções entre imigrantes e nativos aqui na Holanda é a capacidade de ser blasé diante de camundongos. Esqueça NT2 e falar holandês sem sotaque, ou até mesmo gostar de drop: se você parou de dar piti diante de um camundonguinho, você está integrado.
Aliás, nós brazucas chamamos camundongo de rato, né? Nunca vi um brasileiro dizer "tem camundongo em casa", a gente sempre diz "tem um rato" — mas diga que tem rato em casa e o holandês vai arregalar os olhos, porque aí a coisa ficou séria! Ele vai entender que tem uma ratazana na sua casa. A placidez é reservada para a coabitarão com muizen (singular muis), não ratten (singular rat).
Porque, tipo, sim, rola uma certa política e tolerância batavo-roedora, desde que sejam camundongos. "Enquanto os bichos não comem minha comida", disse um amigo holandês para quem eu me queixava sobre meu primeiro encontro com camundonguinhos, "eu não tô nem aí. Durmo tranquilo, ignoro os barulhinhos deles e boa".
Como sempre digo, tem um motivo de a expressão ser “choque cultural” e não “transição suave e tranquila cultural”….
O meu primeiro encontro com essa situação foi logo que me mudei. Devia ser 2008. Foi assim:
Era umas onze da noite, estávamos em casa, a noite prometia ser calma e a semana boa (era segunda. Eu devia ter desconfiado.) quando minha corrente de pensamentos foi interrompida:
- UaaAahUHHhauugh, UM BICHO!
Mal ouvi o grito da Carla na cozinha e vim correndo. Um bicho, que bicho?
- Eu não vi direito, acho que era um RATO!
- UaaAahh... hã, tem certeza?
- NÃO!
- Pra onde ele foi?
Ela me apontou um pedaço de parede intransponível, onde ela se juntava ao gabinete da cozinha.
- Huh, eu não vejo por onde ele possa ter passado.
- Mas... mas... tinha um bicho e foi por ali!
Procurei mais cuidadosamente e vi uma micro-frestinha de poucos milímetros.
- Por ali?
- Acho que foi.
Com isso me convenci profundamente de que não poderia, de maneira alguma, ser um rato. Digo, ratos são coisas redondas e a microfenda era achatada. Era auto-evidente que se tratava de uma lagartixa.
- Era uma lagartixa - sosseguei a esposa.
- Mas tinha um rabo!
- Lagartixas tem rabos!
- Era escuro!
- Eu... hã... tenho certeza... de que existem lagartixas escuras. (O poder da negação em ação.)
- Era peludo!
- E... huuh... com pelos?
- Lacertídaes... não.... TÊM... PELOS!
Sempre esqueço que a querida esposa é bióloga formada.
- Você tem certeza que tinha pelo?
- Não... quer dizer, foi rápido... ele passou aos pulinhos por ali.
- Hm. Lagartixas podem muito bem andar aos pulinhos. Veja.
Imitei com as mãos uma lagartixa andando aos pulinhos. Eu estava determinado a não ter um rato na minha cozinha num país estranho às onze da noite.
- Ela fazia assim? Era assim, não era? Tipo uma lagartixa?
Ela me olhou, olhou pra frestinha, olhou pra mim de novo... e resolveu entrar em negação junto comigo.
- É, deve ter sido uma lagartixa.
Sentamos na frente do computador. Não durou muito. A "lagartixa" colocou sua cabecinha com orelhas redondinhas de Mickey Mouse pra fora do fundo do gabinete.
Pânico generalizado. O que fazer? O que fazer? Não tínhamos nada remotamente adequado ao combate de roedores, e nem onde comprar. As onze da noite em Amsterdam só tinha balada aberta. Fora disso, se não tem ninguém morrendo não tinha serviço pra você, exceto uma ou outra Avondwinkel — uma loja com horário de serviço deslocado para tarde/noite.
Depois de uns vinte minutos correndo em círculos, incapazes de raciocinar, lembramos de uma Avondwinkel mais ou menos perto de onde morávamos. Fechamos tudo, deixamos o camundongo no controle do imóvel e nos mandamos pra lá.
Dez minutos depois estávamos diante da loja, que estava aberta ainda, mas com a porta trancada. O dono da loja nos viu do lado de fora, apertou o botão da trava elétrica e nos deixou entrar. Era um microbazar, desses de bairro mesmo, com coisas em geral.
O dono da loja era um senhor com cara de marinheiro holandês que faz a barba com navalha sem fio. Se tivesse nascido uns 350 anos antes seria o cozinheiro de um navio da Compania das Índias Orientais. Ele segurava uma lapiseira e fazia o desenho realista do rosto de uma garota de olhos claros. Eu elogiei o desenho. Perguntei se ele tinha algo pra cuidar de ratos. Ele pareceu não entender. A Carla disse que tinha um rato na nossa cozinha. Ele abriu um sorriso. Só isso?
- Ah, não se preocupe.
- Não?
- Amsterdam está cheia de ratos. Toda essa água, sabe como é. Eu mesmo tenho diversos na loja, correndo pra lá e pra cá.
- Mas o senhor tem algo pra lidar com eles?
- Não. Eu tinha ratoeiras, mas acabaram.
- E o que devemos fazer?
- Oras, peguem um gato!
Suspiro. Sem mais nada a fazer, voltamos para casa, limpamos tudo e fechamos todas as comidas em potes de plástico. E resolvemos trazer nossos gatos do Brasil — foi um processo de meses, envolvendo toneladas de burocracia e eu pagando por quilo extra dos nossos felinos.
Mas depois que eu importei as duas bolotas de pelo ronronentas do Brasil, os camundongos desenvolveram um saudável respeito pela nossa casa.
Graças, aliás, principalmente à Boo. Nós tínhamos dois deles: Linus e Boo. Linus era mais velho, branco, fofo e altamente preguiçoso. A Boo era multicolorida, menor, mais ágil e ativa.
A Boo predava e não perdoava. E se eu ficasse para testemunhar a caça, ela aleijava o bicho e me trazia, pimpona e orgulhosa, pra eu finalizar o serviço:
— Vamos Dani, ela me dizia, eu sei que você é um felino excepcionalmente desajeitado, grande e feio (pra Boo, é pré-requisito ser felino para ser da família), mas você consegue agora, eu te ajudo. Toma, vai *patadinha no bicho todo troncho que se mexe um tico e eu pensando AAAAAGHH, mas tentando a compostura porque não queria passar muito vexame na frente da Boo*.
— Vamos, Dani, finaliza ele. *cutuca, bicho se mexe*
– AAAAAAAAGHHHHHHH! Respondia eu, perdendo a compostura.
Odeio rato. Hã, e camundongo também.
Mas enfim, graças à Boo, a patrulha na nossa casa ficou cerrada e o perímetro mantido. Graças à Boo, não ao Linus.
O Linus, na primeira vez que encontrou um camundongo, recebeu um conjunto completo de deméritos por não estar de prontidão e falhar em manter vigília, mas o que ele fez a seguir resultou em corte marcial por comportamento pulsilânime face ao inimigo: ele virou nas quatro patas e fugiu.
Durante os procedimentos do julgamento, ele apresentou a seguinte defesa:
- Dani, meu papel é ser fofo e fazer companhia colenta pra você e as crianças, eu não me misturo com roedores, não é higiênico. Segurança Interna é trabalho da Boo...
Eu absolvi o peste, ele já estava no meu colo ronronando mesmo...
Hoje, ambos já faleceram. Linus se foi em 2016 e a Boo em abril de 2021, quase três anos atrás. Eles eram parte da família, e companheiros insubstituíveis.
…
Em 2015 nós nos mudamos par um prédio mais moderno (construído em 2001 — para Amsterdam qualquer imóvel construído nesse século é moderno). Nunca mais vimos um ratinho na nossa casa, mas ainda lembro das histórias, e os meus filhos amam que eu conte, repetidas vezes, sobre eu panicando diante da feroz eficiência felina da Boo e sobre a indiferença do Linus bonachão.
E se você está se mudando ou recém mudado para a Holanda, e enfrentando seu primeiro encontro com o clã local do Mickey Mouse, espero que as histórias sirvam de consolo, alerta e quiça divertimento.
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Forte abraço
Daniduc
Hahahahahahaha ri demais!
Só contando desse jeito pra achar graça! Kkkkkkk
Sei bem o que é essas frestas no gabinete da cozinha! Lá em casa tem e tá temporariamente resolvido com um pano e peso de academia segurando. Kkkkk não quero saber de lagartixa orelhuda vindo por ali!
Aplausos pra Boo e Linus ⭐⭐
hahahaha eu li sentindo arrepios e engulhos. Ainda processando!