E aí, tudo bem contigo?
Outro dia eu contei a história de porque parei mais de ano de produzir conteúdo (e falar com pessoas no geral - foi tenso). Mas os desafios de saúde não foram os únicos perrengues desse ano difícil. Sabe a bike cargo elétrica, que a gente usava para transportar nossos dois saguis (meus filhos, a gente chama eles assim) por Amsterdam afora. Se você me acompanha na época do Insta, você pode lembrar do Tchaaaaaau das crianças indo pra escola na bike. Lembra?
Se não lembra, e está curioso pra saber como que uma bicicleta pode custar 5000 euros e transportar duas criaturinhas saguizentas, dá uma lida na edição #33, contei tudo e fiz o review completo dela. Pois é. Roubaram ela. Duas vezes. Foi assim…
A bike caixote holandesa (Bakfiets)
A Holanda se move a pedaladas sobre duas rodas, e isso não foi uma conquista tão fácil quanto as pessoas tendem a achar. Todo mundo foca como o país é plano, mas carro também anda no plano, e era para onde a Holanda estava indo pós segunda guerra mundial. Felizmente, conseguiram mudar isso. Contei aqui como o povo holandês lutou por décadas contra o governo deles para que não seguisse a tendência mundial da época de motorizar o país, e desse uma chance pras bikes. Yeah, os holandeses estavam brigando pra bicicletar antes de ser modinha. (e muitas das mudanças da época para tornar as cidades boas para carro em vez de bikes estão ainda hoje sendo revertidas).
Bom, sendo que os holandeses se transportam basicamente de bike, como fazer com as crianças? Levar na garupa eles até levam, e tem cadeirinhas pra isso, e ate alguns modelos de bicicleta especiais, chamados de Mamafiets (“bicicleta da mamãe”).
Impressionante, né? mas eles aprendem desde pequenos a arte do múltiplo carregamento sobre duas rodas:
O próximo passo na evolução do transporte de crianças é a Bakfiets, a bicicleta-caixote.
Basicamente um carrinho de mão-bicicleta, os holandeses enchem a parte da frente (e algumas vezes a garupa também) de criança e saem por aí, fazendo o pingue-pongue casa-escola-casa, além de levar pra natação, ballet, futebol (hey, eles são tri-vice campeões do mundo no masculino e uma vez vice mundiais no feminino). Eu sempre achei super cool. Assim que pudemos, compramos uma para transportar nossos dois saguis.
Transporte urbano moderno - Urban Arrow, uma alternativa ao carro para a família
Mas nós não compramos uma Bakfiets tradicional, fabricada pela marca do mesmo nome, com a caixa feita literalmente madeira, old school. Não, nós optamos pela bem mais moderna (e bem mais cara) Urban Arrow, uma marca que surgiu em 2010 para revolucionar o mercado. Toda modernosa, material futurista, com computador de bordo, assistência elétrica no pedal, fez um grande sucesso. Quando compramos a nossa em 2017, ela já era razoavelmente popular. Hoje, você não consegue andar 60 metros sem ver uma ou duas (literalmente, uma vez contei 22 estacionadas nos 1200 metros entre a nossa casa e a escola).
Isso tudo apesar do preço salgado (pagamos na época mais de cinco mil euros - hoje ela está chegando nos seis mil). A Urban Arrow custa quase o preço de um pequeno carro, porque a proposta dela é, de fato, ser um “carro” elétrico de 2 rodas - ou uma alternativa ao carro para transporte urbano. E olha que já vi mais de uma vez adultos sendo carregados na caçamba da Urban Arrow. tem até uma empresa de compartilhamento de Urban Arrow, no modelo dos carros compartilhados.
Agora faz a conta: uma bike extremamente popular, muito cara, e que precisa ser estacionada nas ruas, mas não cabe nos racks regulares de bicicleta. Isso aí resulta em quê?
A primeira vez que roubaram a nossa Urban Arrow
Yeah, claro, a taxa de roubo de Urban Arrow e seus acessórios é bem alta. A capa de chuva da Urban Arrow custa, só ela, 300€ e tivemos três roubadas. A primeira, estávamos bem inocentes, deixamos instalada na bike durante a noite e achamos duas no dia seguinte. Não, claro, achamos nenhuma, e as crianças foram infelizes tomando chuva pra escola. A segunda, ficamos mais ligeiros e colocamos uma trava de bicicleta na capa, dessas simples feita de arame com um cadeado basicão. Ah, obviamente cortaram o arame e levaram sem a menor dificuldade. Daí me enfezei e a próxima capa eu desenhei ela toda, para diminuir o valor de mercado. Daí roubaram a bateria. Ela fica travada na bike, e é removível com uma chave. Mas esquecemos uma noite na bike (travada, mas enfim). Achamos duas no dia seguinte. Heh, claro que não. Custa uns 800€ a bateria.
Ainda bem que a gente tinha seguro que cobria todos os acessórios, além da bicicleta em si. O seguro de fato repôs o dinheiro das capas e bateria. É inviável ter uma Urban Arrow sem seguro em Amsterdam. Repusemos a bateria e voltamos pro dia a dia... Até que em um deles não achamos a bicicleta.
Achados e perdidos: a pequena detetive resolve o caso
A essa altura a gente já estava escolado no procedimento de fazer BO em holandês e acionar seguro. Declaramos tudo, e ficamos esperando a resposta da seguradora, para podermos comprar outra. Dois dias depois da ocorrência (olha eu todo usando linguagem policial) a nossa sagui mais velha desceu pra rua pra brincar com uma amiguinha da vizinhança (deixar os filhos brincarem na rua é um dos motivos da gente ter decidido ficar na Holanda, anos atrás). Ela tem um celular (sim, está ficando grande nossa Babyduc) e recebo a ligação dela, toda empolgada:
— Papai, papai! Acho que sei onde nossa Bakfiets está!
Eu fiquei todo incrédulo. Desde o roubo, ela dizia que iria procurar a bicicleta pela vizinhança, e eu dizia “filha, a bicicleta está longe, já foi vendida, a gente vai comprar outra”… Sabe como é, é bonitinho, mas a gente tem que preparar os filhos pra realidade da vida e…
— PAPAI! Desce aqui, é a NOSSA BICICLETA!
— Filha…
— VEM PAPAI!
Okay, não podemos argumentar com um “vem papai”. Eu instrui ela pra ficar longe, vir pra casa e desci. Encontrei as duas amigas em ebulição. Apontaram a casa da vizinha, onde estava uma Urban Arrow preta, sem capa de chuva. Mas com uma certa campainha enferrujada bem…. conhecida. Me aproximei e notei os adesivos… familiares. Coloquei a chave e… abriu. Era nossa bike.
…
Conversando com a vizinha, ela disse que achou a bike jogada na rua e pensou que obviamente era roubada. Ela acionou a policia e fez um BO, onde ela inclusive informou o número do chassi da bicicleta. A polícia nunca cruzou os dados dos nossos BOs e precisou minha filha não perder a esperança e manter os olhos abertos para resolver a situação. Chamamos a polícia, que veio, confirmou tudo e disse “puxa, que sorte a de vocês, tenham um bom dia”. Informamos a seguradora que ficou toda feliz de não ter de pagar nada dessa vez. Quer dizer, além a terceira capa de chuva, que não estava na bike - tinham levado ela toda desenhada mesmo.
Mas eu tinha me enfezado. Resolvi comprar duas travas especiais pra nova capa de chuva - que também modifiquei inteira, escrevi NOT FOR SALE e o número do chassi em toda ela, além de destruir com uma tesoura a etiqueta da marca Urban Arrow (que notei, era mostrada em destaque nos anúncios de venda de segunda mão, para mostrar que era genuína). E comprei uma AirTag da Apple, escondi na bike, fechando com a trava da capa de chuva, além de ter um adesivo informando que a bicicleta era rastreada por GPS. Se tentassem roubar de novo, dessa vez seria diferente.
E foi.
O segundo roubo da bicicleta: dessa vez foram profissionais…
Bom, vou dizer que pelo menos dessa vez não roubaram a capa de chuva. Um ano depois do primeiro roubo, a Carla foi descer para levar as crianças (eu não posso mais dirigir a bicicleta devido a minha visão) e achou no lugar nossa trava Abus de quase 100€ aberta no chão. Nem arrebentada, aberta mesmo. E claro, estava chovendo. Bastante.
Eles foram a pé para escola, e eu fui para o telefone contactar a policia para passar o rastreamento da AirTag. Indicava estar parada em um estacionamento na frente de um complexo comercial, perto de uma das balsas que liga Amsterdam Norte com o resto da cidade, atravessando a baía.
Todo empolgado, fui atendido por uma pessoa educada e solicita. Quando expliquei a situação ela me disse:
— Você pode ir até o local indicado pela AirTag e se sua bicicleta estiver lá, pode nos ligar.
Não vou mentir, eu estava esperando que a polícia fosse até o local e se a minha bicicleta estivesse lá eles poderiam me ligar. Expliquei que queria meio que o inverso do que ela estava falando, mas fui logo posto em meu lugar. De maneira muito educada ela disse o equivalente de “a gente tem mais o que fazer do que ficar rodando atrás da sua bike”. Well… fuck. De onde venho, pensei, ladrões de bicicleta tem argumentos fortes, digamos, de certo calibre, então não estava muito empolgado de ir atrás. Ela me prometeu que se alguma viatura tivesse uma folga, eles iriam ver. Até lá, era comigo, se eu quisesse. Fiz o BO e ficamos acompanhando o movimento da bike no mapa.
Primeiro ela pegou a balsa e cruzou a baía. Depois ela começou a andar pela autoestrada, em direção a Zandaam. Daí sumiu um tempo, e reapareceu de volta em Amsterdam, numa ruazinha cerca de 500m do ponto da balsa.
Lá pelas 2 da tarde, um policial me ligou, e disse que estava disponível para ir olhar. Passei o endereço novo e ele me ligou 20 minutos depois. Tinham ido com a viatura até lá, circulado a rua, mas não acharam nada. Well. FUCK!
Acionamos o seguro e esperamos. A AirTag continuava lá, sem se mexer. Eu saiba que as chances de nossa bicicleta ter voltado para Amsterdam e estar parada lá eram zero vírgula zero. Digo, a polícia foi ate lá! Mas… bem, seria que pelo menos eu recuperava a AirTag? Resolvi ir até a rua.
Um novo brinquedo para alguma criança
A rua era pequena, e parecia ser o lar de uma comunidade. tinha crianças brincando na rua, tinha um casamento rolando num pequeno centro religioso, tinha velhinho num banquinho na calçada. o que Não tinha era uma Urban Arrow. Andei para cima e para baixo com o celular na mão esperando pegar um sinal da AirTag e nada.
Uma certa altura eu notei um portão aberto, com entrada para um pequeno estacionamento que parecia servir várias casas. Resolvi entrar. PLUP! O Celular apitou com o sinal da AirTag. Fraco mas estava lá. Segui e parei ao lado de um casa, um sobrado de dois andares. Parecia vir de uma janela no segundo andar. Huh.
Olhei para a casa. olhei para a rua. Crianças brincando. Casa. Crianças brincando na frente da casa. Rua. Crian…
O cenário se formou na minha cabeça.
Durante a noite a equipe sai “coletando” Urban Arrows de famílias pela cidade. Eles levam para o ponto de escoamento, onde atravessam a baía, carregam num caminhão, onde vão para uma oficina na direção ou redondezas de Zandaam, para trabalhar o produto. Nisso, acharam a AirTag. Se eles destruíssem ali, a última localização conhecida fica mostrando no mapa - queimação de filme certa. Um deles põe a AirTag no bolso e volta para Amsterdam, onde ele “trabalha”. Descendo da balsa, descarta a AirTag numa rua perto. Uma rua com crianças curiosas e brincando. Uma delas vê um novo objeto brilhante com uma maçã jogado na rua e resolve guardar (a minha filha levou muita pedrinha para casa quando era pequena). Deixa no quarto no segundo andar da casa dele. Um marmanjo barbudo aparece dias depois andando com um celular na mão e cara de interrogação.
Yeah, faz sentido. Não tenho prova de nada disso, mas a explicação é boa o suficiente para mim. Voltei para casa sem mais palavra.
Roubo de bicicleta em Amsterdam
Bicicleta é parte da cultura holandesa, e os holandesinhos aprendem a andar de bike pouco depois que aprendem a andar. Dizem que em Amsterdam tem mais bicicletas que habitantes. Roubo, ou, mais precisamente, furto de bicicleta é endêmico aqui. E sendo Amsterdam a maior cidade, é onde tem o maior número de ocorrências.
A polícia nem vai atrás, e nem culpo o policial de rua. Eles sabem que as bikes mais caras tem seguro, e de fato tem mais o que fazer do que ficar caçando bicicleta, e eventualmente até isso foram verificar. O problema teria de ser atacado a partir de uma esfera mais alta. Colocar detetive no caso, montando operação. Distribui Urban Arrows com rastreador nelas. Apreende um caminhão, uma oficina, interroga e vai subindo na cadeia de comando. Sei lá, não sou policial, mas sei que isso teria de ser combatido com ordem de cima.
Pelo que pesquisei, as Urban Arrows roubadas na Holanda são escoadas para países vizinhos: Bélgica, Reino Unido, Alemanha. As seguradoras daqui mantém um cadastro de chassis, e se a bike é reportada como roubada, eles não seguram. Aí escoar para outro país é mais fácil. Uma bike dessas, vendida de segunda mão com origem altamente duvidosa (quem compra desconfia mas não questiona muito a fundo) pode bater 1500€. Vale o risco para quem rouba, e sempre tem um mercado ávido. Eu espero que quem roubou e vendeu eventualmente seja preso algum dia, e quem comprou que pelo menos use para levar criancinhas para escola. Me sinto melhor pensando que nossa bike ainda está em algum lugar fazendo o pingue-pongue casa-escola-casa e sendo útil. E que a criancinha que achou a AirTag se divirta. Talvez um dia até perceba que vale uns 40€, e pode vender e comprar algo que queira ou precise com isso.
Fim de uma era na família Ducs
E essa foi a história de como roubaram nossa bike de 5000€. Bom, com a inflação e valorização da marca, quase 6 mil euros. A seguradora pagou cerca de 2/3 disso, porque nossa bike era antiga, de 2017. A gente resolveu que não valia a pena comprar de novo. Nossa mais velha já tem a bike dela e vai sozinha. O menor já tá na idade de começar a ir na sua própria bike. Usamos o dinheiro para comprar uma bicicleta nova normal para a Carla, pros saguis e guardar o resto do dinheiro. E eu continuo a pé e, quando não tem outro jeito, transporte público. É um fim de uma era na nossa família. Apesar do stress dos furtos (okay, eu sei a diferença), a nossa Urban Arrow foi um grande investimento e rodamos, nós quatro, milhares de quilômetros nela. A vida segue, e em Amsterdam, ela segue em duas rodas.
Obrigado pelo seu apoio
Gostaria de agradecer a todos que estão apoiando a Newsletter e com isso, me incentivando a continuar escrevendo! Como forma de agradecimento, eu tenho colocado conteúdo extra como bônus, como as fotos do meu caderno de trabalho da época do blog, contendo um roteiro inédito, e como eu me organizava para fazer um blog profissional. Ou esses dois guias com dicas de como melhorar suas fotos de viagem e como fotografar no frio. Se tornando um apoiador, você pode ler esses dois posts, e os futuros também.
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Forte abraço
Daniduc
Hahahaha que amorzinho, a Saguizinha resolveu!
Lembro muito que, quando criança, eventualmente os adultos procuravam algo com a maior insistência, e eu sabia onde estava, mas levavam vários minutos até que alguém me ouvisse - afinal, era uma criança.
Acho que se eu tivesse uma por perto, sempre consultaria a visão dela antes de formar um conceito completo sobre algo!
Eu lembro dos sagüis dando tchauzinho indo para a escola! ❤️