Como funciona o Sistema de Saude na Holanda
Considerado um dos melhores do mundo, tem suas vantagens e desvantagens
E aí, tudo bem contigo?
Um dos assuntos mais controversos sobre “vida na Holanda” é o sistema de saude daqui. As pessoas ficam emocionais (e nisso eu me incluo), tanto defendendo quanto atacando, porque saude é um negócio bem pessoal mesmo. E inevitavelmente entra a comparação com o Brasil.
A Holanda é um modelo a ser seguido? Ou, se eu critico o sistema de saude na Holanda, eu sou um expatriado mimado reclamando de barriga cheia enquanto vivo no “primeiro mundo” sem reconhecer as duras realidades do Brasil. Se elogio, sou um deslumbrado.
Mas muita gente que entra nessas comparações (e sempre acha um jeito de me xingar no processo) na verdade tem conhecimento teórico do assunto. Com todos os meus vieses, tenho ao menos um conhecimento bem prático. Usei, e uso, muito o sistema de saúde na Holanda. E como curioso que sou, fui atrás de entender a teoria além da prática.
Eu não tenho pretensão de comparar com o Brasil, o meu assunto é Vida na Holanda. Para comparar seria preciso um tratado muito mais profundo do que cabe nesse email. Mas posso dar uma ideia de como funciona o. sistema de saude holandês, como uma curiosidade (e talvez utilidade, se você mora ou quer morar aqui).
É afinal, bom ou ruim?
Eu já me ferrei no sistema de saúde da Holanda, e já fui salvo por ele. Sofri desnecessariamente, mas tive acesso a tratamentos de ponta que me custaram muito pouco (ou nada). Existem muitos fatores, sociais, sistêmicos e culturais envolvidos. O mundo não é preto e branco.
Vamos juntos dar um tom de cinza nessa história.
Como funciona o sistema de saude na Holanda na teoria: o clínico geral (Huisarts), emergências e especialistas
A teoria é excelente, na verdade. Você vai adorar.
Todo mundo tem aqui um Médico da Família, que é um Clínico Geral, chamado de Huisarts. O Huisarts é a sua primeira linha de atendimento, e tem seu histórico e te conhece. Você sempre liga para a clínica do Huisarts, incluindo em emergências. Se a emergência é fora do horário comercial, você liga para o plantão, que é unificado na cidade ou região que você está. O nome do plantão é Huisartsenposten.
Se a emergência envolve risco imediato de vida, ligue para 112.
Mas digamos que não seja umma emergência, você só precisa de uma consulta. Você marca, vai e o Huisarts vai te examinar. Se for um caso que caia na clínica geral, esse é o seu tratamento. Se for algo que exija um médico especialista, ele irá te encaminhar para o especialista em questão. Aqui na Holanda a gente acessa o especialista através do Huisarts, não direto. Você não procura, digamos, um gastro, você vai no Huisarts e, se ele achar que é o caso, te encaminha pro gastro. (uma vez encaminhado, porém, vocÊ segue o tratamento com o especialista para esse caso, não precisa ficar voltando no Huisarts).
Muitas vezes o especialista trabalha no Hospital. Eu tenho uma doença ocular, e sigo o tratamento com um oftalmo especializado, num hospital. Eu já tinha o diagnóstico (e tratamento) no Brasil. Quando cheguei aqui, fui no meu Huisarts, expliquei o caso, e ele imediatamente me encaminhou. Agora trato essa doença direto no meu oftalmo. Porém, se estou com dor de estômago que não passa, eu ligo pro Huisarts,
Ótimo. E quanto custa tudo isso?
Como e quem paga pelo sistema de saúde na Holanda
A saude na Holanda é uma parceria público-provada. Todo mundo tem que ter um plano de saude, e muitas empresas oferecem planos. Porém, os planos são regulamentados pelo governo.
Existe um plano mínimo, com preço tabelado pelo governo, que todas as empresas devem oferecer. Esse plano cobre o básico de saude (com os itens determinados pelo governo), e na real, cobre bastante coisa. Mas se você quer coisas extras, aí entra seu poder aquisitivo (ou benefício da empresa que você trabalha). Coisas extras como cobertura de medicina alternativa, fisioterapia de esporte, ou luxos coo quarto separado em caso de internação (o que é uma fortuna — eu sempre fiquei internado em quarto coletivo aqui).
O preço do plano básico é subsidiado para as empresas de seguro saude pelo goiveiro, que paga a diferença entre o que ele custa de verdade e o que os cidadãos pagam. Em teoria, todos devem ser capazes de pagar esse plano básico, mas se não for, pode aplicar pro governo cobrir o custo. A ideia é,. claro, todo mundo tem acesso ao sistema de saude.
E não existe aqui o conceito de “carência”. Você sempre está coberto para todas as doenças. Você pode trocar de plano (e empresa) quando vira o ano (e não antes ou depois).
O plano de saude inclui uma caução, uma certa quantia que, se vocÊ usar, vocÊ tem que pagar. Acima disso, é coberto pelo seguro. E os planos incluem a medicação na cobertura (e caução).
Os hospitais são entidades privadas, mas sem fins lucrativos. Ale’m das empresas de saude, o governo também subsidia parte das despesas dos hospitais.
Mesmo que a gente nem pague a maior parte do tratamento, os preços em si não são estratosféricos como a gente ouve falar dos EUA, por exemplo. Eu vi o quanto custou uma das minhas cirurgias, e não foi absurdo (tudo somado saiu na casa de 5000EUR, o seguro pagou anyway). O meu passo de ambulância e internação em uma as ocasiões saiu uns 700EUR. Não paguei nada (eu já tinha estourado a caução anual do meu plano ha muito — doença crônica é foda).
Tudo muito excelente, e ótimo. Aliás, o sistema de saude dia Holanda é considerado um dos melhores do mundo. Quais as queixas então? Do que tanto os brasileiros reclamam quando se mudam?
Como funciona o sistema de saude na Holanda na prática
Existem fatores que complicam a bela teoria que expliquei. Muitos são sistêmicos, muitos são culturais.
Um fator sistêmico é a sobrecarga do sistema todo. Isso resulta em grandes filas de espera, por exemplo. Mas tem também sobrecarga em cima dos huisartsen. Eles acabam tendo muita gente para atender, e muitas vezes eles acabam, digamos, sendo mais expressos do que a gente gostaria. E todo tratamento que é pedido ou encaminhado gera burocracia, com o médico tendo de justificar tudo para a seguradora.
Isso tudo resulta numa certa pressão para te dispensar o mais rápido possível. Ou nem te admitir em primeiro lugar. Um exemplo pessoal, eu chamei o huisartsenpost com dor extrema no abdômen no meio da noite. Fui para o hospital, e o medico me deu morfina e me mandou pra casa. Era um calculo biliar passando, mas não fui nem diagnosticado nem muito menos admitido. Depois de muita dor e sofrimento, fui diagnosticado, mas desincentivado a fazer a cirurgia de remoção da vesícula. Tive outra crise, dessa vez absurdamente forte, resultou naquele passeio de ambulância, emergência com UTI e morfina na veia, era uma emergência, tinha de operar, o mais rápido possível. Isso quer dizer que esperei, em casa, apenas 7 dias, a base de analgésicos poderosos) pela vaga mais recente que eles tinham.
Poderia ter sido diagnosticado, internado e operado da primeira vez? Você me diz. Mas não fui.
E esse não foi, logicamente, o única caso que ocorreu comigo. Eu fui dispensado com uma infecção intraocular que quase destruiu meu olho — foi um evento meio traumático para mim. (E tenho casos escabrosos que ocorrem com amigos, mas não são meus casos para compartilhar). Isso são apenas anedotas que ilustram o problema sistêmico que citei. Ele existe, é reconhecido, e não ocorre só comigo ou meus amigos. É geral.
Por outro lado, uma vez que você é admitido, o tratamento é excelente. Tive acesso a cirurgião de ponta, e grandes especialistas, a custo quase zero (para mim).
Agravando a tendência de te dispensar, há uma certa inclinação cultural dos holandeses de interferir o mínimo possível nos processo naturais do corpo. Muito hippie, mas ligar pro Huisarts quando seu filho tá com 4o graus de febre e ouvir que febre é natural, deixa rolar, liga só se passar disso, bem, você pode concordar ou não, mas reconheça que isso irá enervar um pai brasileiro com uma criança sofrendo. Mesma coisa com infecção de ouvido — eles se recusaram a tratar por dias, a criança sofrendo e chorando na dose máxima de analgésico, foi horrível. Um tempo depois, diagnosticamos uma leve perda auditiva em um dos ouvidos, que não existia antes.
“Dor não e emergência” dizem eles se a dor é de algo passageiro. Todo mundo tem histórias da atitude de “toma paracetamol e espera duas semanas” para tudo (e, como contei acima, tive casos de “toma morfina e espera’). O corpo se auto cura, sim, em muitos casos é verdade, mas um tratamento pode evitar sofrimento.
Por ser cultural, os próprios pacientes holandeses não reclamam tanto, e sofrem calados. Muitas vezes ignoram sintomas e não vão ao Huisarts até ser impossível ignorar, as vezes atrasando assim tratamentos de casos mais graves. os holandeses podem achar normal e se conformar com o “paracetamol e espera”, mas nós brazucas, ah, a gente reclama.
Outra diferença que incomoda os brasileiros é o aparente descaso com a medicina preventiva aqui. Se você não tem sintomas, e sintomas agudos, não tem motivo para ir ao médico. Ah, okay, mulheres a partir de uma certa idade fazem um exame ginecológico preventivo a cada cinco anos. E eles fazem exames de visão e audição nas crianças. Verdade. Mas é meio que isso. O lema por aqui parece ser, “sem sintomas, sem doença”, e bem… nem sempre isso é verdade. Fora que muitas vezes é “com sintomas, toma paracetamol e vê se passa sozinho”. Yeah. Tem hora que não passa sozinho, ou passa, mas o paciente junto.
O sistema de saude nao Holanda: bom ou ruim?
Os dois. Ele tem aspectos admiráveis. E devo muito a ele. Tive (e tenho) médicos e tratamentos excelentes, por preços absurdamente razoáveis, e, querendo ou não, praticamente todo mundo tem acesso a ele aqui.
Porém, ele tem aspectos problemláticos, que resultam em sofrimento e altos riscos desnecessários, muitas vezes com consequências graves.
É melhor, pior, do que outros lugares, ou no Brasil? Não me propus a fazer essa comparação, e mantenho. O que me propus fazer é explicar, de maneira introdutória (é, afinal, um email) como funciona, os aspectos positivos e negativos, ilustrados com experiência pessoal, na minha visão (prejudicada que seja pela doença).
Espero que seja útil, e você entenda esse post pelo que ele se propôs.
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Daniduc
Muito bem colocado, da maneira que um leigo pode entender.