E aí, tudo bem contigo?
Aqui na Holanda estava um frio decente até semana passada, com temperaturas negativas [or tempo suficiente para congelar alguns lagos e canais em certos pontos do país. Em Amsterdam, apenas a mais fina das camadas de gelo se formou em alguns pontos, nada o suficiente para os holandeses exercerem a sua grande paixão nacional: patinar em gelo natural.
Sim, a Holanda ama futebol, mas nada chega perto de patinar em gelo natural, e não, gelo artificial nem se compara na mente holandesa com o produto genuíno da mãe Gaia.
Desde que cheguei na Holanda eu ouço, todo inverno, o lamento de que não neva mais (nevou semana passada) e não é mais possível patinar em gelo natural, infelizmente. “as novas gerações” ouço eles dizerem desde 2007 quando aqui cheguei, “não sabem patinar, porque não congelam mais os canais”.
Um tanto disso é, claro, drama batavo: os canais congelaram diversas vezes de 2007 para cá, mas isso não impede o lamento (nem com eu mostrando fotos recentes). Sem mencionar que neva quase todo ano e eles insistem que não.
Por um lado eles são dramentos sobre esse ponto, por outro, eu meio que entendo. Primeiro, a nostalgia dos “bons e velhos tempos” é como a constante de Plank: vale no Universo todo. Ao contrário da constante Plank, ela não tem nenhuma relação necessária com a realidade. É como seres humanos funcionam.
Porém, os holandeses tem uma certa razão: os inverno eram, sim, mais rigorosos, e o congelamento de canais era mais frequente. Há décadas não acontece a mítica, épica e lendária ELFSTENDENTOCHT, e há quem lamente que ela nunca mais ocorrerá.
O que bonecos de neve é uma “elfstedentocht”? Oras…
Elfstedentocht: a mítica ultramaratona de patins mais difícil do mundo
Quando faz frio o suficiente em Friesland, no norte da Holanda, se torna possível patinar nos canais congelados que formam uma intrincada rede que acaba por conectar diversas cidades da região. Os locais costumavam então patinar por esses canis, fazendo um grande tour por onze cidades de Friesland.
Em holandês, “onze” é “elf”, cidades é “steden” e tour é “tocht”. Como holandês não acredita em barra de espaço (dizem que para fazer espaço no teclado ABNT NL você tem que usar shift-ctrl 2), eles puseram tudo numa só palavra: Elfstedentocht, o tour dos tours.
Em 1890 um holandês resolveu organizar e formalizar a tradição do tour numa corrida altamente peculiar e altamente desafiadora.
São cerca de 200km de patinação no auge do inverno, por desoladas paisagens das terras planas, muitas vezes com vento e baixa visibilidade (há poucas horas de claridade no inverno, além das condições climáticas adversas). Você tem que passar por todas as estações de checagem em cada uma das 11 cidades (mais 3 estações surpresa), e terminar antes da meia noite. Muitos começam. poucos terminam.
E você não faz ideia da loucura que vira o país quando o gelo em Firesland é declarado forte o suficiente para aguentar os cerca de 15 mil patinadores que se lançam ao desafio. O país literalmente para. Os trens para Friesland superlotam. O cao impera, e as Terras Baixas descem em todo seu peso no gelo para participar ou apenas testemunhar a mítica “tocht der tochten”, o tour dos tours.
a noite anterior da largada queima com uma festa tamanho país na cidade de Leeuwarden, o ponto de largada e chegada da Elfstedentocht, ao pé de um, o que mais, moinho de vento.
As cinco da manhã do dia seguinte, a prova começa.
Um evento super raro
Essa começa toda pode parecer exagero, mas é um evento muito antecipado (é só fazer -1 uns dias a a imprensa já começa a fazer barulho), mas também extremamente raro.
Primeiro, claro, não é só fazer -1. Tem que fazer frio de verdade, na casa de -15, -18 ou mais frio, por muitos dias para o gelo firmar (e mesmo assim, muitas vezes ele não firma o suficiente no percurso todo - debaixo de pontes é um notório ponto de possível problemas). E essas condições na Holanda são raras: a prova foi formalizada em 1890, mas a primeira só ocorreu em 1909. E houve, no total, apenas 15 provas aconteceram… em mais de um século!
A patinação no gelo natural é uma obsessão holandesa, e sua maior prova é mais rara do que eclipse total do sol (especialmente se você contar os seis meses de tempo nublado aqui como “eclipse total do sol”).
A última Elfstedentocht ocorreu em 1997. É algo memorável, quando ocorre.
Os vencedores são sempre lembrados, seus nomes viram lendas. Só que a coisa toda é mais pela farra do que pela glória, e certamente muito mais pela glória do que pelo dinheiro. Há um certo espírito amador e irreverente diante de tão brutal prova.
Patinar por paixão, não por competição: uma prova do espírito holandês
Em 1933 os dois primeiros colocados, quando se aproximavam do fim de exaustivos 200 quilômetros de patinação, se deram as mãos e cruzaram a linha de chegada juntos, empatando, numa pura demonstração de holandezisse destilada: patins, gelo e a cultura de não se destacar. Doe normaal, jo! (“aja normalmente, cara — faça como os outros!” um ditado/expressão típica daqui).
Na próxima Elfstedentocht, de 1940, os CINCO primeiros colocados se deram as mãos e cruzaram a linha juntos, empatados. A organização do evento se enfezou com a esculhambação e proibiu a prática, ameaçando com pronta desqualificação quem fizesse isso. Pelas 4 Elfstedentochten seguintes todos se comportaram, mas em 1956, novamente cinco primeiros colocados desafiaram a organização e cruzaram a linha de chegada de mãos dadas. Mais um empate.
A organização não desqualificou eles, mas declarou que a corrida oficialmente não teve vencedores. O que, para falar a verdade, meio que significa que foi empate, e meio que era essa a ideia dos patinadores mesmo.
Embora muitas vezes a prova quase que termina sem vencedores porque ninguém chegou ao fim mesmo. Em 1963, apenas 57 patinadores terminaram a prova, dos 10.000 que iniciaram. A Elfstedentocht daquele ano ficou conhecida como De hel van ‘63 (O inferno de 63).
Depois de 63, a próxima prova só ocorreu em 1985. Dessa vez teve competição para valer e ninguém cruzou linha de chegada de braço dado, para alívio da organização.
Os holandeses deram sorte e teve outra Tocht no ano seguinte em 86, mas aí ela pulou 11 anos e só voltou em 97. E desde então…. nada. o mundo fica mais quente, os invernos não são o mesmo e as crianças de hoje em dia nem sequer aprendem mais a patinar no gelo natural e…
Damn it, estou já ahá muito tempo na Holanda…
Okay, a verdade é que a realização de um Elfstedentocht não depende apenas de temperaturas baixas, mas condições climáticas específicas: o gelo tem que se formar e ser de boa qualidade, o que outros fatores, como estar nevando ou não, influenciam. Mesmo em invernos rigorosos acabou não tendo as condições precisas da prova. Já é difícil ter uma na melhor das hipóteses, e é fato verificável que o mundo está ficando mais quente. Talvez, a Tocht de 97 tenha sido a última.
Espero que não. Espero que eu viva ainda para ver uma Eflstedentocht ao vivo. Porque vocÊ pode ter certeza, que se tiver uma, eu estarei lá para ver junto com esses resmungões, gozadores e igualitários holandeses.
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Forte abraço,
Daniduc na Holanda