Ideologias são perigosas e não preciso de uma para viver (nem você) - Dicas de filmes, livros e música - Newsletter #42
E aí, tudo bem contigo?
Antes de começar: semana passada eu publiquei junto da Newsletter uma versão em áudio. Essa semana não fiz isso (você vai ver o motivo já já), mas posso publicar um podcast separado, contando esse Newsletter para você ouvir enquanto faz outra coisas (eu não leio o texto, que seria chato, mas vou falando os mesmos temas). A minha pergunta é: você gostaria disso?
Se apenas uma ou duas pessoas pedirem dificilmente irei gravar. Se um monte de gente decidir que ouviria, eu gravo e publico mais para frente essa semana. Ou ao menos tentarei.
Okay, agora vamos para a Newsletter propriamente dita.
Eu tenho mandado regularmente uma edição por semana na terça feira, mas ontem eu tive consulta e exames e nisso foi meu dia (e francamente, os dias antes eu não estava super motivado, porque detesto fazer esses exames). Foi pentelho, mas passou e agora é esperar or resultado para marcar a próxima cirurgia (e depois dela, serão mais seis meses de recuperação, se eu tiver sorte). Enquanto isso, sigo fazendo exercícios e escrevendo, e “lendo” (ouvindo).
Eu reli o livro Walkway, de Cory Doctrorow. Eu gostei, claro, estava relendo, mesmo discordando de muitas das premissas dele. É uma ficção científica de utopia/distopia, no estilo “despossuídos e membros de minorias fazendo a revolução contra elite poderosa” que forma uma porção razoável dos livros do Doctorow, o tipo de fantasia anarquista que só funciona em livros de ficção. Eu não tenho problema nenhum com ler livros cuja tese eu discordo, desde que entretenham e me façam pensar, que seja para refutar.
Exemplo disso é que também li diversas vezes o livro Tropas Estelares de Robert A. Heinlein, que é uma utopia basicamente inversa de Walkway, e da qual eu também discordo, talvez ainda mais. Enquanto Doctorow descreve uma utopia esquerdista, criando uma sociedade igualitária lutando contra a opressão hierárquica doa bilionários, Heinlein imagina uma utopia direitista, basicamente uma ditadura militar lutando contra a sociedade alienígena insetóide que é basicamente uma colônia comunista. Yeah, nenhum dos dois é muito sutil.
Do motivo de não gostar de ideologias nem acreditar em Utopias
Meu primeiro problema com as duas é que… bem, eu não gosto de Utopias sustentadas por ideologias, direita, esquerda ou centro. Uma Utopia ideológica imagina um mundo perfeito, onde todo mundo que pensa como você se organiza e faz as coisas funcionarem como elas deveriam funcionar, se não fosse por essas malditas pessoas que não pensam como você. E essa é a parte mais problemática de uma ideologia. O que fazer com as pessoas que não pensam como você e nunca vão pensar como você? Ao longo da história muitas ideologias responderam essa questão com um adágio: para se fazer uma omelete é preciso quebrar alguns ovos.
Medo.
Veja só, uma vez estabelecido uma sociedade ideal, quem pensa diferente de você está impedindo um mundo perfeito de acontecer, e portanto, podem “justificadamente” serem afastados, ostracizado, excluídos, condicionados (“re-educados”) ou, claro, simplesmente eliminados. Ninguém mandou eles atrapalharem o futuro ideal da sociedade. Algumas ideologias nem sequer admitem a possibilidade de conversão forçada, silenciamento ou afastamento e vão direto para eliminar fisicamente, resultando em genocídio. Mas mesmo as outras opções são altamente problemáticas, e para mim formam o problema fundamental em se ter uma “ideologia” e sonhos de sociedade ideal: a desumanização do dissidente como um empecilho, um verme traidor, que pode ser justificadamente eliminado ou neutralizado, de um jeito ou de outro. A imensa maioria das vezes a única diferença entre uma utopia ideológica e uma ditadura é se você concorda com ela ou não - ou se ela concorda com você ou não. Porém, lembre-se: você concordar não justifica moralmente a supressão de quem não concorda, mesmo que você considere essas pessoas como seres horríveis que não evitariam em fazer o mesmo com você primeiro. Pessoas que você consideraria nojentas.
Dica pró: quando você ler alguém dizendo que tem “nojo” de certo tipo de gente, seja por qual fator for, incluindo opiniões, fique alerta. E se você for a pessoa que disse ter nojo de “pessoas assim”, ou que “pensam assim”, fique MUITO alerta. Leia (ou releia) sobre os 10 estágios do genocídio.
Mesmo as mais bem intencionadas ideologias estão sujeita ao passo 1, nós contra eles, e a desculpa de “ele fez primeiro” ou “ele começou” não funciona como justificativa nem com meus filhos disputando vez no videogame.
E o passo 4, desumanização, é denunciado por essa palavrinha “nojo”. Alerta. Ainda dá tempo de mudar, e repensar essa história de “ideologia”.
Entretanto, gosto de ler livros de ficção sobre utopias. Leio livros de guerra também, e de crime, e nem por isso gosto dessas coisas na vida real. Mais para frente nessa newsletter te dou dica de filme (bom) sobre um conquistador sangrento. Mas antes vamos falar ainda sobre o Walkway.
Corpo são em mente sã: um depende do outro
Outra tese do Walkway da qual eu fundamentalmente discordo, é que o livro parece tratar o corpo físico como um mero recipiente da mente, algo descartável e verdade uma limitação inconveniente, um problema a ser solucionado. Por uma boa parte da minha vida eu meio que acreditava nisso também, nerd orgulhoso que me diferenciava de “jocks” musculosos e incultos, mas mudei de ideia. Corpo e mente são fundamentalmente ligados e, em última análise, a mesma coisa, partes indispensáveis de você.
Pronto, falei.
Seu corpo sem sua mente não é você. Sua mente sem seu corpo não é você. Nós somos mais do que a soma de corpo e mente, mas corpo e mente são fatores indispensáveis na equação do ser. Você não pode abrir mão de nenhum dos dois. Matar seu corpo e preservar sua mente é matar você. Matar sua mente e preservar seu corpo é matar você. Sua saúde física influencia na sua saúde mental. E vice-versa.
No livro, o narrador defende que sua mente é algo independente do “hardware” em que ela roda, seja ele tecido vivo ou chips de silício. Não é. Mas a ideia é interessante, e ficção científica é totalmente sobre explorar ideias interessantes.
E dá para ouvir um livro interessante enquanto se faz exercício, como ilustra a minha semana ;)
Outra coisa que fiz essa semana foi escutar canto gutural mongol. Heh. Sim, eu sei. Se você ainda está comigo, vou continuar a testar sua tolerância para assuntos aleatórios. Sua recompensa: descobrir algo que dificilmente o algoritmo vai te contar, a não ser que você já conheça de antemão.
Canto gutural da Mongólia, uma música estranhamente meditativa
Okay, para os poucos que não desassisaram, deixa eu te mostrar um vídeo, onde um músico e cantor gutural mongol canta uma música junto com sua filhinha, que também canta e marca o ritmo em um chocalho feito de ossos de coluna de cavalo. Não, é sério, é maravilhoso. Ouve, vai:
O nome dele é Batzorig Vaanchig e dela é Maral. Não sei você, mas esse vídeo aquece meu coração. Um pai passando uma tradição cultural, e criando arte com sua filha é algo de apelo universal, e ao mesmo tempo o que está sendo mostrado é específico da Mongólia, um país que sabemos tão pouco, inundados que somos nas tradições culturais ocidentais.
As dificuldades da Mongólia
A Mongólia enfrenta hoje sérias dificuldades sócio econômicas e geopolíticas. Sua geografia é hostil, composta por montanhas, um deserto e muitas estepes varridas constantemente pelo árido porém congelante vento siberiano, um solo permanentemente congelado tornam agricultura basicamente impossível. Sem acesso ao mar, o país é o mais desolado do mundo, com apenas 3,3 milhões de habitantes em um território de mais de 1 milhão e meio de quilômetros quadrados. E mais da metade desses habitantes vive em uma única cidade, a capital Ulã Bator (Улаанбаатар), deixando mais de 99% do país com praticamente ninguém, com tribos nômades criando animais de casco (carneiros, bodes, cavalos). Isso já seria bem problemático, mas a geografia da Mongólia apresenta mais um desafio: o país é um enclave entre a Rússia e a China, o que eles descrevem como “compartilhar uma toca com um Dragão e um urso”.
A China anexou parte da Mongólia (até hoje), e o restante do país se tornou um estáto=satélite da união Soviética, que só não o anexou totalmente para evitar treta com a China. Mesmo depois do colapso da URSS, a Mongólia tem que ficar apaziguando seus belicosos vizinhos: a Rússia, com o. bloqueio econômico imposta pela União Europeia, resolveu escoar uas reservas de gás natural da Sibéria direto pra China, passando sem pedir muita licença pra Mongólia. A Mongólia depende da Rússia para suas importações, e da china para exportar, e ao mesmo tempo não quer irritar os EUA nem a UE. Um equilíbrio tenso e difícil para se juntar aos problemas domésticos, agravados pelo aquecimento global. Você vê, com o aumento da temperatura, a cada permanentemente congelada do solo está derretendo, e isso torna o solo instável, danificando muito da esparsa infra estrutura do país.
No meio dessa situação toda, a cultura mongol persiste e é passada pra as próximas gerações, e pode chegar até mim via YouTube. Épico:
Eu fiquei fascinado, e passei dias ouvindo mais do canto gutural mongol. É hipnótico e meditativo, sons guturais misturados ao assobios, perfeito para ser carregado pelo vento vindo as montanhas e rolando pelas estepes, e milagrosamente apaziguando a cacofonia da nossa mente fragmentada pelo frenético ritmo de vida ocidental. Não, sério, feche os olhos e ouça (ou ouça de olhos abertos curtindo as reações do bebê e a épica paisagem da montanha invernal):
Não? Ainda acha bizarro? Esse é o ponto. Sair da nossa bolha e vivenciar um pouco de estranheza do diferente, para variar o conforto do conhecido.
O canto gutural requer controle da respiração. Respire. Solte.
Dica de Filme: Mongol
Apesar das dificuldades atuais, houve uma época que a Mongólia comandou o maior império terrestre da história. Sim, maior que o Império Romano.
Vendo as dificuldades da Mongólia hoje você talvez fique surpreso em saber que o maior império terrestre da história não foi o romano, mas o Mongol. Saindo das estepes, Tamujin, mais conhecido como Genghis Khan, ou Chinggis Khan, seu título (e não nome) unificou tribos nômades no século XXIII e iniciou uma campanha de conquista e invasão pela China, Ásia Central e parte da Europa Oriental. Ë uma figura controversa - considerado por muitos um conquistador bárbaro e sanguinário, tem imagem positiva na Mongólia, onde é considerado símbolo da força de identidade do país, e lembram de sua generosidade e habilidade. Estudos genéticos identificaram que cerca de 8% dos homens da região da Ásia entre China e Uzbequistão são descendentes de Genghis Khan: 16 milhões de pessoas! Ele inegavelmente causou milhões de morte e espalhou destruição entre seus inimigos, mas cuidado ao mencionar isso para um mongol. Além de estar insultando um símbolo cultural, tem uma chance de você estar falando mal da família, literalmente.
Independente da opinião sobre Genghis Kan, é uma figura histórica importante. Existe um filme biográfico, que aborda os anos antes de Temujin se tornar o grande Khan. É de 2007, uma produção conjunta do Cazaquistão, Rússia, china e Mongólia, falado em mongol. Eu assisti com legendas em holandês quando estava disponível na Netflix, o que já não é o caso faz tempo. Felizmente, você pode ver no Youtube, com legendas em ingl&es (tem que ativar no vídeo, clique na engrenagem).
Ale’m da historian, o filme tem paisagens lindas e, claro, canto gutural em sua trilha.
Mais dica de filme: Duna
Se um filme falado em mongol com legenda inglês é demais para você, podemos ficar no tema ficção científica, temas épicos e até incluir uma cena com canto gutural no filme Duna. Eu estou falando da produção recente, não daquela versão de 1984, uma das maiores bombas produzidas por Hollywood.
Veja, eu gosto da versão de 84, precisamente por ser bisonhamente, objetivamente ruim, mas reconheço que Sting de cuecas e efeitos especiais e atuações que dariam vergonha para uma peça de teatro da terceira série são demais para a maioria das pessoas e não faz justiça a história do livro, considerado um dos maiores épicos de SciFi. A produção de 2021, porém, faz.
Mais fiel a história original, e com um visual inacreditável, é um filmado que trata política, religião e tem um paralelo direto com o mundo real (afinal, um deserto que produz um elemento valioso e essencial para o transporte universal, disputado por grandes potências não é exatamente uma alegria sutil). Recomendo, mas alerto que o filme é apensa a parte um da história. você vai ter que esperar ate mais tarde esse ano para ver a parte 2.
Até a próxima
Obrigado por ter resistido até o final. `Se você curtiu o desenho do Zumbi que eu fiz e postei lá em cima, pode ver mais desenhos que fiz no post apenas para apoiadores da semana passada: Desenhos com caneta tinteiro.
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Forte abraço
Daniduc
Daniel, que viagem maravilhosa são seus textos e dicas. Obrigada! :)